Uma festa para poucos: política monetária no Brasil
12 de maio de 2025
imagem: Mihai Cauli
texto: Sérgio Gonzaga de Oliveira
A comparação internacional, principalmente em relação aos países desenvolvidos, mostra que a economia brasileira tem um estranho comportamento em relação à inflação. A elevação dos juros básicos (Selic) pela autoridade monetária tem um efeito muito limitado no combate à inflação. Em outras palavras, é preciso aumentar muito a taxa Selic para que ela contenha a escalada dos preços. Nos países desenvolvidos, ao contrário, pequenas elevações dos juros básicos seguram a inflação em níveis civilizados. Tudo indica que a economia brasileira é viciada em juros altos. Esse desastre para as contas públicas é uma festa para o mercado financeiro, especialmente os rentistas, que pressionam o governo por cortes nas despesas essenciais para compensar o estrago causado pelos juros altos. Certamente, esse estranho comportamento tem causas que precisam ser investigadas.
Nas décadas de 70, 80 e 90 do século passado, houve um expressivo crescimento e diversificação das atividades financeiras em todas as economias onde o capitalismo se instalou. Os números compilados e publicados pelo McKinsey Global Institute mostram que no final da década de 1970 ativos financeiros e PIB eram aproximadamente equivalentes. Três décadas depois, os ativos financeiros superavam o PIB global em três vezes, indicando claramente que o sistema financeiro se tornou um ator significativo nos rumos do capitalismo atual.[i]
Uma das principais consequências dessa transformação foi a redução drástica da capacidade dos governos de controlar a quantidade de meios de pagamento em circulação na economia. A moeda escritural, representada especialmente pelos depósitos bancários, tornou o sistema bancário o principal emissor de meios de pagamento. Daí em diante, a oferta de moeda passou a se ajustar à demanda ou, como dizem os economistas, a quantidade de meios de pagamento em circulação se tornou endogenamente determinada.
Com a perda da exclusividade de emissão de moeda, os Bancos Centrais passaram a priorizar o controle da inflação pelo ajuste dos juros básicos. O aumento dos juros básicos via diversos mecanismos de transmissão reduz a atividade da economia real, contendo as disputas entre lucros e salários pela renda nacional, o que tende a reduzir o impulso inflacionário. Uma explicação mais detalhada desse processo pode ser encontrada em meu artigo “Moeda, Inflação e Juros: o Labirinto do Capital”, publicado em julho de 2023.[ii]
A política monetária no Brasil
O Banco Central do Brasil foi criado em dezembro de 1964 e ao longo dos anos seguintes assumiu progressivamente as funções de autoridade monetária. Sua principal atribuição tem sido a de preservar a estabilidade da moeda. Para isso, define e implanta na economia a taxa básica de juros (Selic). Adicionalmente, em junho de 1999 foi adotado o regime de metas de inflação com valores estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional. No início, a meta foi fixada em 8% com tolerância de +/-2,0% ao ano e após alguma oscilação foi reduzida em 2005 para 4,5% +/-2,0%, permanecendo nesse nível por um longo período de 12 anos. A partir de 2017, houve um expressivo processo de redução na meta de inflação, de tal forma que em 2024 atingiu 3,0% +/- 1,5%.[iii]
Essa severa redução a partir de 2017 chama a atenção, já que foi realizada em plena crise iniciada no final de 2014. Tudo indica que o Conselho Monetário Nacional, no governo Temer, por razões não muito bem explicadas, forçou um combate à inflação mais rígido justamente quando as condições eram muito difíceis. Viveu-se um período de crise econômica associada a pressões inflacionárias provocadas pelo aumento rápido da demanda e escassez de oferta na saída da pandemia. E, também, pelo aumento do custo do petróleo no início da guerra da Ucrânia. A redução da meta obrigou o Banco Central a elevar ainda mais os juros básicos para atingir objetivos mais rígidos. Parece um contrassenso. No mínimo poderia ter sido aguardado um momento menos turbulento para se reduzir a meta inflacionária. Essa estranha falta de cuidado dá margem a supor que os membros do Conselho Monetário, naquele período, estavam mais interessados em aumentar o rendimento dos rentistas do que manter a inflação sob controle.
Apesar disso, nos últimos 25 anos, o regime de metas de inflação pôde ser seguido pela autoridade monetária. Apenas em seis anos a tolerância máxima não foi cumprida (Anexo). O resultado parece bem promissor, já que o Brasil tem uma economia reconhecidamente instável. Entretanto, esses números são enganadores. O cumprimento da meta de inflação se deu à custa de uma taxa de juros muito elevada, principalmente quando comparada aos países desenvolvidos.
Política monetária nos EUA, na Zona do Euro e no Brasil
O quadro a seguir mostra as médias de juros básicos, níveis de inflação e juros reais para os EUA, Zona do Euro e Brasil no período de 25 anos, transcorridos entre 1999 e 2023.
O quadro acima é muito expressivo. A média dos juros básicos no Brasil, nesse longo período, é seis vezes maior que nos países desenvolvidos. Seis vezes é um verdadeiro absurdo. É como se o Banco Central do Brasil tivesse a mão muito pesada. Chega a ser inacreditável. Mas, apesar disso, a inflação média ainda é três vezes superior. Ou seja, a política monetária no Brasil tem imensas dificuldades para combater a inflação. Mesmo com juros elevados a inflação tem sido muito alta.
Chama atenção, ainda, os juros reais negativos dos desenvolvidos. Isto significa que a rolagem da dívida nesses países foi positiva para o governo, ou seja, o governo recebeu juros para manter a dívida. Em outras palavras, os aplicadores em títulos públicos na Zona do Euro e nos EUA, nesse longo período, pagaram ao governo para guardar o seu dinheiro. Enquanto isso no Brasil, o governo pagou juros reais médios de 6,1% ao ano para manter sua dívida. A diferença é alarmante.
A resposta usual a essa “ineficiência” da política monetária é o déficit público persistentemente alto, como repetem à exaustão a maioria dos jornalistas e economistas que cotidianamente se manifestam nos grandes veículos de comunicação. A consequência óbvia dessa pressão é um enorme esforço do governo para manter um superávit primário elevado, visando impedir que a dívida pública se torne explosiva. O governo se empenha desesperadamente para conter os gastos sociais e de investimentos. O resultado final tem sido um baixo crescimento e uma transferência de renda significativa dos mais necessitados para a elite rentista. Não à toa, o Brasil é um dos países com maior concentração de renda do planeta. E o pior é que esse esforço parece não ter fim. É um verdadeiro trabalho de Sísifo. Haddad e Galípolo que o digam.
As diferenças gritantes entre o Brasil, EUA e Zona do Euro indicam que existem problemas estruturais na economia brasileira que bloqueiam a ação das autoridades monetárias e levam à necessidade de juros muito altos para conter a inflação.
Componentes estruturais da inflação brasileira
As taxas de juros no mercado privado no Brasil são exageradamente altas. A tabela a seguir mostra essas diferenças.
Nos empréstimos pessoais, cartões de crédito ou capital de giro as diferenças são inacreditáveis. Mesmo no crédito com garantia hipotecária, como é o caso dos empréstimos habitacionais, os juros ainda são muito altos. Os juros elevados inibem a atividade econômica e reduzem o crescimento. Com pouco crédito, os agentes produzem ou consomem menos. Essa fuga em relação às taxas de juros do mercado privado torna a atividade econômica pouco sensível à elevação da Selic pelo Banco Central.
Muito provavelmente, essa anomalia tem várias origens, sendo uma delas a concentração de mercado no setor financeiro. Poucos Bancos comerciais controlam a maioria das operações. Segundo o último Relatório de Economia Bancária do BCB, publicado em 06.06.2024, os quatro maiores bancos são responsáveis por 57,8% do crédito total. Como consequência, a lucratividade dos grandes bancos é bem alta em relação ao restante da economia.
Em razão dos altos juros do mercado privado, os agentes econômicos procuram empréstimos com juros reduzidos e regulados pelo governo. É o caso, por exemplo, do Plano Safra e dos empréstimos de longo prazo, via BNDES. Nesses casos, as fontes de recursos vêm diretamente do orçamento federal ou de fundos públicos como FGTS e o FAT, o que permite a redução dos juros. Não são poucos os programas de financiamento deste tipo patrocinados pelos governos em todos os níveis. Outra saída para fugir dos altos juros tem sido a operação com capital próprio, ações no mercado de capitais ou empréstimos externos. As pequenas e médias empresas não têm, em geral, essas alternativas. Da mesma forma, essas taxas de juros e fontes de financiamento são pouco ou nada influenciadas pelo aumento dos juros básicos do Banco Central.
Leticia Magalhães e Gilberto Borça Jr, em pesquisa recente para o BNDES, escreveram: “O BNDES ainda é, de longe, a maior fonte de funding de longo prazo para projetos de investimentos no Brasil. Algo como 45% das operações de financiamento a vencer acima de cinco anos estão na carteira de crédito do Banco. Ao se adicionarem os outros dois grandes bancos oficiais nessa estatística – Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – chega-se a 82,7% da carteira de crédito da economia com prazo de vencimento acima de cinco anos.”[iv]
Como se viu, as taxas de juros nos empréstimos livres são muito altas e os recursos públicos para empréstimos regulados são escassos. Nessas condições, a participação do crédito no total da atividade econômica é muito baixa. Segundo o Banco Mundial, o crédito interno para o setor privado no Brasil totalizou 71,6% do PIB em 2023. Nos EUA é de 192,5%, na OCDE é 143,2% e na média dos países de renda média, 132,6%. A baixa participação do crédito no conjunto da economia inibe muito a ação do Banco Central.
Outra característica da economia brasileira é a alta informalidade. Segundo o IBGE, no trimestre encerrado em set/2024, 38,8% da força de trabalho no Brasil era informal.[v] Por comparação, nas economias desenvolvidas este número raramente atinge 10%. Evidentemente, essa parte da economia não participa ou participa muito pouco do mercado de crédito, não sendo atingida pelos mecanismos tradicionais de combate à inflação.
Vale lembrar, ainda, que o Brasil viveu, antes do Plano Real, longos períodos de inflação elevada. Nessa época, ao invés de se adotar medidas anti-inflacionárias, tomou-se um caminho supostamente mais fácil. Criou-se a correção monetária como forma de atualizar ativos ou dívidas. Essa atitude gerou uma verdadeira cultura de leniência em relação à inflação, já que os recebimentos futuros resgatariam parte das perdas com a inflação passada. Essa prática, disseminada em toda a economia, cria uma espécie de inércia inflacionária que dificulta muito o trabalho do Banco Central. Funciona como se houvesse um piso para a inflação que se transfere do passado para o futuro.
Além disso, a excessiva liberdade cambial em um mercado pequeno, quando comparado aos desenvolvidos, torna a taxa de câmbio muito instável. Os produtores e comerciantes que têm insumos cotados em moeda estrangeira embutem nos preços folgas para fazer frente a esses acréscimos inesperados. Em fases de alta oscilação, esse comportamento alimenta a inflação e independe em boa medida da ação do Banco Central. A imprevisibilidade da oscilação do câmbio faz com que os comerciantes e produtores introduzam margens de lucro maiores na remarcação dos preços, principalmente nos mercados menos competitivos.
Em qualquer economia, a instabilidade política é uma fonte de incertezas para os agentes econômicos. Consumidores, produtores e investidores se retraem ou adotam atitudes defensivas. No Brasil não é diferente. A falência do presidencialismo de coalisão nas últimas décadas levou a uma transferência de poder do Executivo para o Legislativo, criando uma extensa zona de sombra no comando das políticas públicas no Brasil. Essa indefinição acarretou também uma intensa judicialização das ações dos dois poderes, fazendo com que o Judiciário assumisse um protagonismo inesperado. Nunca se sabe o que vai resultar do comportamento caótico de poderes públicos repletos de indefinições quanto às suas competências e atribuições. Da mesma forma, essa instabilidade se reflete na conduta dos agentes em relação à inflação.
A rigidez do orçamento público é outra fonte de incerteza, já que retira do governo a flexibilidade para enfrentar as oscilações características da economia de mercado. Existem muitas regras que tornam mais rígidos os gastos do Estado brasileiro do que em outros países. Muitas despesas são indexadas e crescem por conta própria sem se importar com o crescimento da receita. Proliferam pisos, percentuais fixos, reajustes automáticos, tetos, gatilhos e outros indexadores que fazem da tarefa de preparar e aprovar o orçamento uma verdadeira maratona, com despesas obrigatórias cada vez maiores. De outro lado, os gastos discricionários, que são alocados em função do programa do governo, são cada vez menores. Além disso, os programas já implementados não são avaliados periodicamente. Não se verifica se atendem necessidades reais da comunidade ou se seu custo-benefício se justifica. Uma vez estabelecido, o programa se torna permanente, independentemente de seus resultados.
A rigidez orçamentária, em tempos de recessão, pode levar a déficits públicos persistentes que aumentam a dívida. Quando os déficits são majoritariamente provocados por despesas correntes, criam expectativas negativas em relação à capacidade futura do governo de honrar a dívida. Diante dessa incerteza, os agentes econômicos tendem a se tornar mais cautelosos em relação à economia, com reflexos no reajustamento dos preços.
Todas essas deformações estruturais agem em conjunto, tornando quase impossível a ação das autoridades monetárias. Muitas dessas patologias têm sido objeto de discussões específicas na imprensa, nos Centros de Pesquisa e nas Universidades. Pouco tem sido feito para eliminá-las.
Insensatez liberal ou oportunismo rentista?
Em resumo, os fatos e dados mostram que uma parte substancial da economia brasileira é muito pouco sensível ao aumento da Selic como forma de conter a inflação. Por conta disso, o combate possível é realizado com taxas de juros básicas excepcionalmente altas que pressionam a dívida pública. Como se isso não bastasse, numa atitude insensata, nos anos recentes, a meta de inflação foi fortemente reduzida. Provavelmente ignorando as deformações estruturais que mantém a inflação em um patamar elevado.
Carlos Luque, professor da FEA/USP e presidente da Fipe, juntamente com outros pesquisadores, em artigo no Valor Econômico, relatou uma recente apresentação de Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, ao Parlamento inglês.[vi] Nessa ocasião Blanchard, entre outras medidas, sugeriu que, em condições críticas de combate à inflação, houvesse um aumento das metas inflacionárias, enquanto medidas de mais longo prazo ajustassem a economia. Essa recomendação pode ser aplicada ao Brasil, no sentido de retomar ao padrão de meta de inflação vigente até 2017 (4,5% +/-2,0%), enquanto um plano de mais longo prazo corrige as anomalias estruturais que fazem do Brasil um campeão mundial de juros altos e um paraíso para os rentistas. Continuar favorecendo os rentistas, com uma trajetória explosiva para a dívida pública e cortes expressivos em despesas públicas essenciais, é um verdadeiro suicídio político, econômico e social. (Publicado por Democracia e Desenvolvimento)
Notas:
[i] Roxburgh, Charles et al, Global Capital Markets: entering a new era, McKinsey Global Institute, 2009.
[ii] Oliveira, Sergio Gonzaga, Moeda, Inflação e Juros: o Labirinto do Capital, A Terra é Redonda, jul/2023.
[iii] Os dados primários e suas fontes estão em anexo. Mantive no texto apenas os dados essenciais à compreensão da análise realizada e de suas conclusões.
[iv] Leticia Magalhães e Gilberto Borça Jr, Financiamento amplo às empresas: crédito bancário, mercado de capitais e setor externo, BNDES, 24/05/2019.
[v] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, PNAD Contínua 2024, 29 de novembro de 2024.
[vi] Luque, Carlos et al, As Consequências dos Juros Altos, Valor Econômico, edição de 19 de fevereiro de 2025.
publicação original:
https://terapiapolitica.com.br/uma-festa-para-poucos-politica-monetaria-no-brasil/

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