Aborto e movimentos feministas no Brasil e na Argentina
19 de maio de 2025
imagem: Nexo Jornal
texto: Beatriz Sanchez
Este artigo, publicado na Revista Estudos Feministas, apresenta os resultados de uma pesquisa sobre a influência dos movimentos feministas da Argentina e do Brasil nas decisões das casas legislativas desses países sobre os direitos reprodutivos.
A partir do estudo das histórias desses movimentos e das legislações locais, a pesquisa mostra que a legalização do aborto na Argentina foi resultado da construção de uma coalizão favorável à pauta dentro do parlamento. Segundo a análise, o mesmo não aconteceu no Brasil, uma vez que o congresso brasileiro tem representado muito pouco os interesses feministas.
A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?
Como os movimentos feministas influenciaram, recentemente, a aprovação de proposições legislativas que tratam do direito ao aborto no Brasil e na Argentina?
POR QUE ISSO É RELEVANTE?
Os movimentos feministas dos dois países reivindicam a legalização do aborto desde pelo menos a década de 1960. No caso brasileiro, a Frente Nacional e as Frentes Estaduais pela legalização do aborto, que reúnem organizações e coletivos feministas e são atuantes em diversos estados do país, têm tido um papel importante, mais recentemente, ao pautar esse debate. No caso da Argentina, a Campanha Nacional Pelo Direito ao Aborto foi fundamental para que essa demanda dos movimentos feministas se transformasse em lei.
No entanto, a despeito das semelhanças entre as instituições políticas e o ativismo dos movimentos feministas no Brasil e na Argentina, a demanda pelo direito ao aborto foi institucionalizada de forma ampla somente na Argentina.
Investigar comparativamente esses dois casos nos ajuda a entender melhor a relação entre a sociedade civil e o Estado nos dois países, especialmente as diferenças nas trajetórias dos movimentos e o papel dos representantes políticos na aprovação de leis relacionadas à igualdade de gênero de um local para o outro.
RESUMO DA PESQUISA
Para pesquisar a influência dos movimentos feministas na aprovação de proposições legislativas nesses países, a princípio, comparei tanto as legislações sobre aborto quanto as histórias dos movimentos feministas. Fiz isso a partir da leitura de documentos, leis, artigos e notícias de jornais que datam de 1960 até hoje.
Em seguida, analisei a interação entre esses movimentos e os Poderes Legislativos nos dois países, me atentando ao apoio tanto popular quanto dos representantes políticos à causa, além de estratégias de debate sobre o tema.
No Brasil, destaco a criação, em 2005, de uma comissão tripartite no Congresso Nacional, composta por seis representantes do governo, seis representantes do Poder Legislativo e seis representantes da sociedade civil, para a elaboração de uma proposta sobre a descriminalização do aborto. Apesar da mobilização dos movimentos feministas em torno da proposta, ela não foi aprovada, uma vez que, naquele contexto, o governo não foi capaz de formar uma coalizão majoritária a favor do projeto. Na Argentina, a “Ley de Interrupción Voluntaria del Embarazo” contou com o apoio do governo e de parte considerável da população e foi aprovada pelo Congresso Nacional no final de 2020.
QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES
Encontrei quatro fatores que se destacam na explicação do porquê a legalização do aborto foi ampla na Argentina e restrita no Brasil. Eles mostram que a população argentina é, em geral, mais favorável à pauta do que a brasileira e que o nosso congresso é muito pouco representativo dos interesses dos movimentos feministas.
O primeiro fator foi a diferença no tratamento do tema. Na Argentina, a interrupção da gravidez foi tratada como questão de saúde pública, e não de direito penal. O movimento feminista argentino ancorou sua luta na denúncia de casos de morte de mulheres em decorrência de abortos realizados de forma insegura, o que gerou uma repercussão negativa sobre as restrições ao aborto na opinião pública e mostrou que o assunto deveria ser tratado pelo sistema público de saúde. No caso brasileiro, ao criminalizar os abortos que não se enquadram nas exceções previstas em lei, o Estado tem abordado os direitos reprodutivos predominantemente como uma questão de direito penal, em vez de tratá-los como uma questão de saúde pública.
Em segundo lugar, o caso argentino contava com “aprovação social” antes mesmo da aprovação legislativa. A opinião pública apoiava a causa, inclusive profissionais da saúde e do direito, como o caso dos médicos “amigos” que eram indicados por organizações feministas para pessoas que haviam realizado abortos de forma clandestina e insegura. Portanto, o processo de legalização dentro do parlamento foi um processo de institucionalização “de baixo para cima”, uma vez que a lei apenas reconheceu uma prática que já tinha legitimidade na sociedade. Já no caso brasileiro, as pesquisas de opinião pública têm demonstrado que grande parte da população, ainda hoje, é contrária ao direito ao aborto.
Em terceiro lugar, o projeto de lei que legalizou o aborto na Argentina contou com o apoio do então presidente, Alberto Fernández. Esse apoio permitiu a formação de uma ampla coalizão dentro do Congresso Nacional favorável ao projeto. Diferentemente, os presidentes brasileiros, inclusive de partidos de esquerda, têm se posicionado de forma contrária à pauta, dificultando a formação de coalizões majoritárias dentro do Legislativo para a aprovação do tema.
Por último, no momento da aprovação da legalização do aborto, a bancada feminina ocupava mais de 40% das cadeiras do Congresso Nacional da Argentina. Apesar do Brasil adotar uma lei de cotas para candidaturas femininas desde 1997, a bancada feminina ocupa atualmente 17,7% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Na legislatura que se encerrou em 2022, ela era de apenas 15%. Em períodos anteriores, essa porcentagem era ainda menor. A sub-representação política feminina no Congresso Nacional brasileiro e o aumento da bancada de partidos que defendem posturas mais conservadoras em relação aos direitos reprodutivos têm dificultado a representação substantiva dos interesses dos movimentos feministas no parlamento, especialmente em temas mais polêmicos, como o aborto.
QUEM DEVERIA CONHECER SEUS RESULTADOS?
Além de pesquisadoras e ativistas, esta pesquisa interessa a todas as pessoas preocupadas com a garantia de direitos reprodutivos no Brasil.
REFERÊNCIAS
Belucci, Mabel. “Coalizões queer: aborto, feminismo e dissidências sexuais de 1990 a 2005 em Buenos Aires”. In: Blay, Eva; Avelar, Lúcia (orgs.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile. São Paulo: Edusp, 2017.
Biroli, Flávia; Machado, Maria das Dores Campo; Vaggione, Juan Marco. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.
Gago, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante, 2020.
Lavalle, Adrian Gurza; Carlos, Euzeneia; Dowbor, Monika; Szwako, José. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018.
Zaremberg, Gisela; Almeida, Débora. Feminisms in Latin America: Pro-choice Nested Networks in Mexico and Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2022.
publicação original:


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